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Por Anna Carla Ribeiro

Eu lembro perfeitamente daquelas tardes à beira rio. Das pedrinhas que machucavam os pés, da vista privilegiada da orla, do biquíni listrado e das nossas conversas. Até hoje eu não entendo como ficávamos tanto tempo isolados dos amigos, dos parentes e de todo o resto do mundo. Éramos nós dois, a terra nos pés e as bocas nervosas, que não paravam nunca de contar velhas histórias, arquitetar futuros planos e criar teorias sobre comportamentos humanos.

A minha maior alegria era ter o dia inteiro sem fazer absolutamente nada, só pra fazer tudo por ti. E várias vezes eu deixei toda a rotina de lado, porque não me importava mais com nada além da tua imagem. Era coisa de doido. Nada mais me satisfazia se não fosse contigo, com as nossas conversas, as nossas viagens, as nossas caminhadas pra lugar nenhum, porque não interessava para onde fôssemos, se estivéssemos juntos já estava tudo bem.

Com o tempo, eu já nem me importava mais. Podias escolher o filme, eu assistia qualquer um, o que interessava mesmo era poder deitar a cabeça no teu colo nas noites de chuva. Eu também ia a qualquer lugar. Sabia que iríamos rir e dançar juntos e nos perderíamos no meio da madrugada. E eu deixei de ser tanto eu pra ser tanto tu que chegava a me desesperar. Escondia de ti toda essa submissão com a desculpa de não me preocupar muito com nada, ser tão desligada. Ao contrário de ti, que sempre foste muito cheio de severidade nas tuas decisões.

Mas éramos felizes. Eu ainda consigo sentir o coração quase vomitado pela boca quando minha campainha tocava. Eu já estava atrás da porta, mesmo assim esperava uns 30 segundos pra abrir. Ficávamos horas falando de como a vida era, o mundo era, os homens eram. E essas muitas vezes do nada viraram muitas vezes do sempre. Viciamos-nos em nós mesmos.

Quando ias embora, a minha garganta ficava tão apertada que eu jurava merecer óbito por edema de glote. Eu via teus passos em direção à porta e pensava rápido numa desculpa para demorares um segundinho a mais. “Não saia, existe lá fora um protesto que tomou a cidade. Donas de casa revoltadas com a mais nova edição do Omo Multiação Active Clean”. Como não tinha coragem de pronunciar as minhas baboseiras, ao menos rezava pra que raios beta, em contato com a fechadura, fizessem com que toda a porta virasse ferro fundido de 750 toneladas.

Agora eu fico pensando em como o mundo é, a vida é e os homens são. Todas essas coisas são como descrevíamos, mas era como se aquilo que falávamos não tivesse aplicação na gente, talvez porque não estávamos na realidade. Vivíamos fantasia e falávamos de realidade.

E então eu lembro quando eu te vi pela primeira vez nessa tal de realidade. Eras pra mim tão mais sonho, tão mais fuga, tão mais quimera, que não acreditei que fosses capaz de me levar nas alturas e depois ser o responsável por me jogar de lá, num empurrão sem dó e sem volta. Eu te odiei pelas tuas mentiras e a tua cara de pau. Eu te odiei porque te amava na fantasia, nas conversas à beira do rio. E tu me deixaste na tempestade, bem no meio da passarela da Almirante Barroso.

Foi aí que eu me perdi. Corri dos nossos sonhos como quem precisa aprender a nunca mais sair do mundo dos vivos. Avisei-te tantas vezes que eu não agüentaria viver no meio de tanta materialidade e coisas banais do dia-a-dia. E então me dizias que a vida era assim mesmo, “lembra”? Olhavas-me com ar de superioridade e dizias com toda a segurança do mundo, o mundo real, que eu tinha a mania de maximizar qualquer probleminha.

O problema é que os probleminhas eram criados apenas por ti. E afetavam apenas a mim. Como conseqüência eu saía como a lunática da história. Tu não eras nem personagem, dirigias o filme. Um cara normal que faz coisas normais. “Todo homem trai”. E eu não entendia porque diabos todo o homem trai, se eu não conseguia sequer olhar pro lado, se eu não conseguia dar um passo sem que desses outro, se eu não conseguia passar cinco minutos sem pensar em ti e dois minutos sem planejar o que iríamos fazer mais tarde.

Eu cansei. Cansei de tanta realidade. Cansei do nosso namoro feio, com tanta enganação, tanta mentira, tanto sentimento bom jogado no lixo. Cansei de sermos um casal que com o tempo virou como tantos outros, cheios de segredos e mágoas mal resolvidas.

Ainda tenho boas lembranças daquele tempo que as coisas pareciam tão fáceis e tão mais saudáveis. E essas lembranças na maioria das vezes me fazem ter saudades, não tuas, mas das sensações que eu experimentei. Poderia ser pra sempre. Não foi.

Algumas vezes, na revolta de estar em contato direto com o que é legítimo e verdadeiro, eu te odeio profundamente. Odeio-te por ainda me amares, mas por não saberes o que de fato isso significa. Odeio-te pela descoberta tardia, por me procurares agora e dizer que quer toda a fantasia de novo. Odeio-te porque jogaste tanta realidade em minha vida, que não consigo mais sair dela, e nem sequer consigo cogitar um vôo de devaneio contigo.

Assim, cheia do que é material, físico, bruto, cruel e entupido de átomos, quase tendo uma overdose da “vida como ela é” e das probabilidades do tempo e do convívio, acho que no fim, houve um desperdício de amor. E, quando isso acontece, só sobram mesmo os carros e suas fumaças, a batida atrasada do ponto na repartição e um par de sandálias já gastas.

Quando saímos de um sonho, só nos resta correr atrás de outro. Essa é a realidade.

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